Copiei este anúncio de um site de classificados na internet:
Gol Plus 1000i 96\97 completo, vidros e travas elétricas, limpador e desembaçador traseiro, banco com regulagem de altura, DVD, pneus novos zerado, ótimo estado, mecânica e suspensão novos, tudo ok! Único dono, apenas 55.000 Km, ano 1996.
Você compraria este carro? Ou você teria alguma dúvida?
- O carro é de 1996. São 17 anos. Isso dá 3.235 Km por ano. Possível, mas improvável, não é mesmo?
- Mecânica e suspensão novos. Será?
A maioria das pessoas leigas em carro levaria o veículo para ser revisado pelo seu mecânico de confiança. Por quê? Porque as informações do vendedor nunca são completamente confiáveis, é claro. Mas por que elas não são confiáveis? Por causa do conflito de interesses. O interesse do proprietário é vender o veículo. Ele precisa prestar informações sobre o mesmo. Tais informações podem eventualmente prejudicar o negócio. Assim, por definição, o interesse do proprietário em vender entra em conflito com seu interesse de dizer a verdade. Neste conflito, sabemos quem costuma sair perdendo.
Veja, o vendedor pode recorrer a várias estratégias, com maior ou menor grau de honestidade.
Ele pode mentir. Ano 1996 com 55.000 Km? É, pode ser. Mas pode ser 155.000 Km, mudados com ajuda de um expert em velocímetros. Mas ele também pode OMITIR. O carro poderia ter sido consertado depois de um acidente. O carro poderia ter a embreagem no fim da vida, as pastilhas de freio gastas, a caixa de câmbio arranhando, o motor com folga, queimando óleo, enfim, poderia ser um desastre ambulante e o anúncio poderia permanecer o mesmo, sem que houvesse nenhuma afirmação falsa. O anúncio pode ser "maquiado" sem que se recorra à mentira.
Você compraria às cegas, sem questionar? Claro que não.
O ceticismo é uma ferramenta saudável e imprescindível. É a faculdade de suspender provisoriamente nossa tendência de acreditar. E quase todos nós fazemos uso do ceticismo diariamente, quando falamos com um vendedor de carros usados, quando ouvimos um político fazer promessas, quando recebemos um email dizendo que fomos sorteados para receber 1 milhão de dólares, bastando clicar no link sublinhado...
No entanto, quando a informação é proveniente de figuras de autoridade, muitas pessoas simplesmente abandonam completamente o ceticismo, como se médicos, cientistas e suas organizações fossem imunes aos conflitos de interesse. Não são.
Se você comprasse o carro acima sem questionar nada, estaria sendo no mínimo ingênuo. Pois você é ingênuo se não questionar as diretrizes das sociedades médicas, e pelos mesmos motivos.
O painel de especialistas que estabeleceu que o colesterol normal não deveria ser mais 240, e sim 200, era composto de 9 pesquisadores. Dos 9, oito recebiam dinheiro da indústria farmacêutica (dizem que um deles recebeu mais de 1 milhão de dólares). Segue, abaixo, os nomes de cada um deles, e de quem recebiam valores (são dados públicos, que podem ser conferidos aqui):
ATP III Update 2004: Financial Disclosure
Dr. Cleeman não tem relações financeiras para revelar.
Dr. Bairey Merz recebeu honorários de Pfizer, Merck, and Kos; serviu como consultora para Pfizer, Bayer, and EHC (Merck); recebeu dinheiro para pesquisas de Pfizer, Procter & Gamble, Novartis, Wyeth, AstraZeneca, and Bristol-Myers Squibb Medical Imaging, Merck; ela possui ações da Boston Scientific, IVAX, Eli Lilly, Medtronic, Johnson & Johnson, SCIPIE Insurance, ATS Medical, and Biosite.
Dr. Brewer recebeu honorários de AstraZeneca, Pfizer, Lipid Sciences, Merck, Merck/Schering-Plough, Fournier, Tularik, Esperion, and Novartis; serviu como consultor para AstraZeneca, Pfizer, Lipid Sciences, Merck, Merck/Schering-Plough, Fournier, Tularik, Sankyo, and Novartis.
Dr. Clark recebeu honorários de Abbott, AstraZeneca, Bristol-Myers Squibb, Merck, and Pfizer; recebeu dinheiro para pesquisas de Abbott, AstraZeneca, Bristol-Myers Squibb, Merck, and Pfizer.
Dr. Hunninghake recebeu honorários de AstraZeneca, Merck, Merck/Schering-Plough, and Pfizer, and for consulting from Kos; recebeu dinheiro para pesquisas de AstraZeneca, Bristol-Myers Squibb, Kos, Merck, Merck/Schering-Plough, Novartis, and Pfizer.
Dr. Pasternak foi contratado para dar palestras em nome de Pfizer, Merck, Merck/Schering-Plough, Takeda, Kos, BMS-Sanofi, and Novartis; serviu como consultor de Merck, Merck/Schering-Plough, Sanofi, Pfizer Health Solutions, Johnson & Johnson-Merck, and AstraZeneca.
Dr. Smith recebeu dinheiro para pesquisas institucionais de Merck; possui ações da Medtronic e da Johnson & Johnson.
Dr. Stone recebeu honorários de Abbott, AstraZeneca, Bristol-Myers Squibb, Kos, Merck, Merck/Schering-Plough, Novartis, Pfizer, Reliant, and Sankyo; serviu como consultor de Abbott, Merck, Merck/Schering-Plough, Pfizer, and Reliant.
Não estou de forma alguma propondo que estes senhores estejam mentindo. Mas, para vender meu Gol 1996, eu posso polir um pouco a pintura, trocar as calotas das rodas, e omitir alguns probleminhas para, enfim, salientar suas qualidades, não é mesmo?
Vou dar um exemplo mais caricato, para ver se fica mais claro. Imaginem que estes pesquisadores investigassem o cigarro, e tivessem o seguinte conflito de interesses:
Dr. Grundy recebeu honorários da Souza Cruz; recebeu dinheiro para pesquisas da Souza Cruz.
Dr. Cleeman não tem relações financeiras para revelar.
Dr. Bairey Merz recebeu honorários da Souza Cruz; serviu como consultora para da Souza Cruz; recebeu dinheiro para pesquisas da Souza Cruz; ela possui ações da da Souza Cruz.
Dr. Brewer recebeu honorários da Souza Cruz; serviu como consultor para da Souza Cruz.
Dr. Clark recebeu honorários da Souza Cruz; recebeu dinheiro para pesquisas da Souza Cruz.
Dr. Hunninghake recebeu honorários da Souza Cruz; recebeu dinheiro para pesquisas da Souza Cruz.
Dr. Pasternak foi contratado para dar palestras em nome da Souza Cruz; serviu como consultor da Souza Cruz.
Dr. Smith recebeu dinheiro para pesquisas institucionais da Souza Cruz; possui ações da Souza Cruz.
Dr. Stone recebeu honorários da Souza Cruz; serviu como consultor da Souza Cruz.
Minha pergunta é simples: você confiaria, sem nenhum ceticismo, cegamente, em um documento escrito por estes pesquisadores sobre tabagismo? Pois é... Dê uma olhada novamente na verdadeira lista de conflitos de interesse destas pessoas, e pense se um pouco menos de ingenuidade não vem bem.
O que estou sugerindo aqui é que você tenha, com relação à vida em geral e às diretrizes produzidas por sociedades médicas e governos em particular, o mesmo grau de ceticismo que você teria ao comprar um veículo usado.
É preciso entender que isso não é nenhuma teoria de conspiração. É um fato. Vejam, por exemplo, este estudo:
Pharmaceutical industry sponsorship and research outcome and quality: systematic review
BMJ 2003; 326 doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmj.326.7400.1167 (Published 29 May 2003)
Cite this as: BMJ 2003;326:1167
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